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QUANDO O PÁSSARO DECIDE VOAR EM BUSCA DE NOVOS ARES

Atualizado: 29 de mar. de 2021

A força de uma nigeriana chamada Jane


Enquanto Jane mexe nos cabelos de seus clientes em seu salão de tranças afro, conta com muito orgulho e admiração a sua história como estrangeira que vive hoje no Brasil. Vir da Nigéria, um país no continente africano, que fala outra língua não foi uma tarefa fácil, principalmente porque o destino final seria Ponta Grossa, no Paraná - uma cidade composta majoritariamente por pessoas brancas.


Jane posando em frente a seus materiais de trabalho em seu salão de tranças afro. Foto: Ane Rebelato

Temitope Jane Aransiola, 28 anos, é de Lagos, na Nigéria. Mudar de país significava o começo de uma nova jornada para Jane (como é chamada no Brasil), criar asas e descobrir novos horizontes. Era a oportunidade de construir a sua história em um novo lugar, mas sempre levando toda bagagem que conquistou neste país africano que está localizado no Golfo da Guiné.


Quando o pássaro decide voar em busca de novos ares


Mas, para contar como foram esses processos de mudança, vamos voltar 10 anos, ou seja, em 2011, que foi quando Tope Aransiola veio ao Brasil juntamente com seu irmão gêmeo, Abdou. Os seus pais sempre tiveram vontade de que seus filhos estudassem fora do país de origem para desbravar outros lugares. A motivação familiar fez com que ela criasse uma imensa curiosidade para conhecer o mundo lá fora. Depois de concluir o ensino médio começaram as pesquisas para escolher o melhor lugar para estudar. Enquanto jovem trabalhava como auxiliar de professora em uma escola e, quando atingiu a maioridade, veio para o Brasil e "caiu de paraquedas em Ponta Grossa”.


Jane gostaria de ir para um país que falasse a sua língua, pois facilitaria seus estudos. Porém, o único local onde estava disponível uma bolsa de estudos era o Brasil. Sua mãe insistiu para que ela fosse para Suécia, mas seu pai achou que já estava na hora de voltar a estudar: “Não foi uma escolha minha vir para o Brasil, mas acho que nada acontece por coincidência e por isso estou aqui”, conta emocionada. Antes de mudar de país fez um curso intensivo de português, que levou cerca de 3 meses, para chegar sabendo pelo menos o básico de conversação.


O processo de vinda para estudar na Universidade Estadual de Ponta Grossa é chamado de PEC G: Programa dos Estudantes- Convênio de Graduação. Neste programa estão cadastrados, atualmente, 68 países localizados entre a África, América Latina, Caribe, Ásia e Europa. De acordo com o site oficial do governo, o programa “Oferece a estudantes de países em desenvolvimento, com os quais o Brasil mantém acordo educacional, cultural ou científico-tecnológico a oportunidade de realizar seus estudos de graduação em Instituições de Ensino Superior (IES) brasileiras”. Quando chegou ao Brasil, Jane foi atrás de regularizar toda sua documentação e matrícula.


Na época não havia nenhuma orientação da Universidade para auxiliar neste processo, quem direcionou Jane e seu irmão foi um outro imigrante, angolano, que havia chegado alguns dias antes que eles.


Ficaram na casa do estudante por dois dias e, como sua irmã estava acostumada com outra realidade, ficou preocupada que não estivessem bem acomodados. Jane viu o local como uma oportunidade de conhecer as pessoas que ali moravam, fazer amizades e se enturmar no novo país. Além disso, era uma forma de economizar já que a moeda do seu país, Naira, é desvalorizada em relação ao Real. Por ser muito grata a atitude do estrangeiro que os recepcionou, nos próximos anos Jane fez questão de receber os outros imigrantes que chegavam à cidade de Ponta Grossa, auxiliando-os com o que podia.


A luta diária para conseguir viver longe de casa

Durante toda entrevista, até mesmo quando expõe as situações difíceis que fizeram parte do percurso no processo migratório, Jane procura mostrar gratidão pelos caminhos que precisou passar e dos desafios de ser estrangeira.


Algo que a incomodou muito foi como as primeiras amizades não passavam de curiosidade com o novo. “Queriam provar as comidas do meu país, saber um pouco mais de lá. Quando isso acabou as pessoas fingiam que nem me conheciam”, conta emocionada.


A discriminação por ser negra e estrangeira também teve impacto negativo na trajetória de Jane no Brasil. A nigeriana chegou a ouvir, de pessoas próximas, expressões como “você está roubando a vaga de brasileiros” e também “o Brasil é muito legal por deixar pessoas como você vir para cá estudar, né?”. Além de uma afronta quanto a sua cor de pele, isso afeta diretamente em um pré conceito acerca da sua capacidade intelectual.


Durante a temporada, ela e seu irmão iam para praia trabalhar em empregos temporários, como por exemplo restaurantes, e fazer dinheiro. Essa fase foi complicada para Jane, que estava com depressão, passando por um momento difícil na vida. Foi o seu irmão que a motivou e incentivou a continuar.


Por ter feito um curso em um país que fala uma língua diferente, quando voltasse para lá precisava provar seus conhecimentos por meio da apresentação de trabalhos realizados no Brasil, mercado de trabalho, mas não conseguiu emprego e tudo isso contribuiu para que o desânimo em relação ao país aumentasse.


“Eu não tinha nem 5 mil reais para voltar para meu país. A lei não permitia que a gente trabalhasse, além de que meu curso era integral. Eu precisava ser compreensiva, meus pais não tinham como levar eu e meus irmãos para Nigéria de volta”.


Foi um grupo de conversação que a ajudou a permanecer vivendo longe de casa. O carinho dela pela professora mediadora Cloris é tanta que a denominação escolhida foi de “mãe brasileira”. Foram essas pessoas que serviram como base para que Jane não desistisse de construir sua história no Brasil. “Tinha um grupo de uma professora do departamento de letras. Aquele espaço foi muito além de produções acadêmicas, foi totalmente terapêutico. Todo esse apoio foi fantástico, ela que ajudou bastante”.



Quando o assunto é a receptividade das pessoas na cidade foi totalmente uma quebra de expectativa. A visão que tinha aqui era que “os brasileiros eram muito legais e iriam me fazer sentir em casa”. Durante as aulas de português que teve na Nigéria conheceu Salvador e Rio de Janeiro, ou seja, estava esperando um calor humano maior. “Eu não sei se o problema foi que eu cheguei aqui com muito entusiasmo mas a gente percebe que aqui as relações sociais são diferentes”.



A adaptação de Temitope foi extremamente difícil e ela levou em média 3 anos para se acostumar com o Brasil sendo seu novo lar . A questionei se não pensou em ir embora, voltar para Nigéria. “Eu pensava isso mas não como algo que eu faria de verdade. Às vezes a única opção que você tem é seguir em frente e não olhar para trás. Eu tive colegas legais, professores maravilhosos, mas foi bem difícil. Era uma luta diária”.



“Quando passava pela minha cabeça ir embora, lembro do dia que saiu o resultado e eu e meus irmãos fomos aprovados. Já era de madrugada e meus pais sorriam e dançavam, pois seus 3 filhos passaram no processo seletivo. Eu não podia decepcioná-los, era minha responsabilidade honrar os esforços deles (...) A Nigéria sempre será minha primeira casa, mas o Brasil sempre será minha segunda casa. Não consigo largar daqui, tenho amigos, mães brasileiras. Todos os lugares têm dificuldades, independente do lugar que eu esteja. A questão da raça é um problema em todos os lugares”


Sonhos compartilhados


A ideia de fazer tranças surgiu em 2013, quando percebeu que faltavam salões na cidade para cuidar de cabelo crespo. Jane não achou um lugar que cuidasse do seu cabelo da forma certa . Ela e suas amigas faziam tranças no cabelo uma da outra e começaram a chamar atenção de outras pessoas.


Faziam uma trança ou outra em quem pedia, mas sem cobrar. Porém, a demanda aumentou muito. Em 2013, receberam um convite do Núcleo de Relações Raciais, do departamento de letras da UEPG, para ir até uma comunidade quilombola explicar para as meninas a importância e beleza do cabelo delas.



A situação encontrada foi muito triste. Essas meninas tinham vergonha de que tocassem em seus cabelos. Isso foi o que impulsionou Temitope e suas amigas a começarem a atender o público. “Além da cor de pele, você ainda tem que lidar com o seu cabelo”.



Engana-se quem acha que Jane aprendeu a fazer tranças com o objetivo de trabalhar na área, ela apenas tinha esse talento. O aprimoramento veio no Brasil, quando pesquisou mais sobre o que era tendência. “Isso é mais gratificante ainda e aquece o meu coração porque sei que estou fazendo a diferença na vida de outras pessoas. É incrível ver quem começou com a gente em 2013 hoje trocando dicas conosco".


O salão, que atualmente é localizado na Rua Doutor Colares, número 15, no centro da cidade, antes estava em um espaço improvisado perto da universidade. A mudança veio pois sentiu que precisava de um espaço com visibilidade maior e que tivesse espaço para fazer tudo o que desejavam.


Abriu o salão com novo endereço em meio a pandemia, em meados de novembro de 2020. Mesmo com o caos do coronavírus, seus clientes mantiveram-se fiéis. “É uma jogada de doido em meio a pandemia abrir um salão, mas que deu certo”



Atualmente, além do salão de beleza, Jane também é sócia de uma loja de roupas de banho chamada Temini, com vendas para todo Brasil. O objetivo de tudo isso? “Queremos ver a cultura africana ser representada do jeito que merece”, conta Jane com orgulho. Além de biquínis e sungas, vendem turbantes, toucas de cetim e brincos.


Em seus projetos pessoais estão: finalizar o doutorado em linguística aplicada e manter o salão sendo um sucesso na cidade. Depois de relembrar todo seu percurso de mudança, contou uma vontade antiga de escrever um livro sobre o assunto. Ao finalizar a entrevista, com muita esperança, Jane faz um último pedido: “Espero que essa história seja ouvida por outras pessoas, pois, acho sim, que elas precisam ouvi-la”.


Jane, com olhar seguro, diz que já contou diversas histórias e muitas vezes elas foram tiradas do contexto: “Posso contar nos dedos as entrevistas que realmente fiquei feliz, foram duas. Elas retratavam o que eu dizia sem tirar do contexto. Não é que a gente não goste de falar sobre nossa história, é como ela é apresentada”.


Em relação a sua percepção sobre o país onde nasceu, Jane conta que quando voltou para a Nigéria para uma visita, isso mudou. Sentiu que tudo no país era menor, com atendentes muito apressados, meio grosseiros e isso a decepcionou bastante. Porém, mesmo com as novas diferenças, não cansa de reforçar: “meu coração tem duas casas, Nigéria e Brasil”.


 

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